La Paz

Os primeiros raios de Sol iluminavam o pasto seco e amarelo, enquanto um grupo de homens e mulheres assistiam na beira da estrada ao motorista e mais três rapazes trocarem o pneu. No interior do ônibus, a impaciência era maior. A senhora sentada a minha frente reclamava da abundância de carga. Era quase unanimidade entre os que permaneceram sentados que o incidente fora causado pelo excesso de peso. O pin azul do Google Maps indicava que estávamos parado em algum lugar entre os vilarejos de Urmiri e Poopó, a algumas horas de Oruro.

Todos ali tínhamos iniciado a viagem em Tupiza - quase fronteira com a Argentina - às 9:05 horas da noite anterior. Assim que o ônibus chegou, abri o maleteiro e meti minha mochila sobre os pertences de outros passageiros. Assim que subi a escada de acesso ao piso superior do veículo, eu já estava metido em meio a uma confusão de bolsas e sacolas lotadas de produtos de contrabando. Pisávamos sobre mantas e cobertores largados no chão. Uma garota ‐ de no máximo treze anos - levava no colo um gato recém-nascido dentro de uma caixa de papelão. O miado agudo e constante podia ser ouvido de todas as poltronas. 

A desorganização causava um brutal congestionamento no corredor. Alguém havia ocupado indevidamente a poltrona 14 com seus pertences. Assim, o moço da 14 instalou-se no assento ao lado, o que fez com que a senhora da 15 ocupasse a minha poltrona. E eu, que atrapalhava a passagem no corredor, tive de me espremer ao lado da senhora da 15 e do rapaz da 17, enquanto a situação não se resolvia.

Fazia pouco tempo que tínhamos deixado o terminal e o ônibus foi obrigado a parar pelo controle policial. Subiram dois guardas para verificar os documentos dos menores, enquanto falavam sobre sequestro infantil e outros crimes bárbaros. Ao mesmo tempo, era possível ouvir que outros policiais abriam e fechavam com força os maleteiros.

A minha mochila. Não precisava muito para que alguém a agarasse e levasse embora. Fiquei obcecado com a ideia de que perderia ali todas as minhas roupas, livros e quase tudo que precisava para viajar. Olhei ao redor e todos levavam consigo seus pertences pessoais. Só eu havia colocado a mochila junto das sacolas de contrabando. Meus pensamentos giravam em círculo entorno desse tema, mas não tinha nada que eu pudesse fazer. Coloquei os fones de ouvido e o ônibus voltou a se movimentar. 

O frio de fora vindo do Salar atravessava a fina janela, driblava a barra da minha calça e alcançava meu tornozelo, onde a meia não podia proteger. O lado de fora já estava completamente escuro e o vidro da janela era um espelho negro que refletia as luzes dos celulares. Eu trocava de música constantemente, pois nenhuma era capaz de vibrar na mesma intensidade do escuro que eu via do lado de fora. A noite comprimido o ônibus por todos os lados.

Apoiei minha bochecha no punho fechado e não demorou para que o cansaço tomasse conta de mim. Associações ilógicas e imagens aleatórias passavam desordenadamente na minha mente. Faixas, bandeiras e cartazes. Dentro de uma sala branca e vazia, alguns jovens universitários de classe média protestavam contra o atual governo brasileiro. Aquela sala onde eles estavam - e eu também estava - era a sala de teatro do meu antigo colégio. Eu seguia alguns metros atrás aquele grupo de oito ou nove estudantes. "Antes isso era favela, agora é o caos", estava escrito em um dos cartazes. 

Um barulho do lado direito do ônibus me fez despertar. Os primeiros raios de Sol iluminavam o pasto seco e amarelo.

Devo admitir que a viagem não era em nada agradável. Volta e meia o ônibus era tomado por um cheiro de frango frito ou o choro de uma criança me despertava dos meus breves sonos. Mas é verdade também que aquele caos e todos esses eventos incontroláveis me davam um prazeroso desejo de escrever. Eu tomava notas freneticamente sobre tudo que havia ali: as cores dos vestidos das senhoras, o que levavam em suas bolsas, as frases mais repetidas pelo senhor da última fileira. Tudo poderia suscitar novos pensamentos. 

A viagem tinha se tornado mais tranquila depois que alguns passageiros desceram em Oruro. Mas assim que alcançamos a periferia de La Paz, toda a atmosfera caótica do interior do ônibus havia sido transferida para as ruas e calçadas.
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